dia 03 – uma nota sobre o livro Music – A Subversive History

em Music – A Subversive History, o Ted Gioia comenta bastante sobre as pessoas não reconhecidas pelos legitimadores da história que contribuíram e que influenciaram a maneira em que consumimos e que entendemos como funciona socialmente a produção e a fruição musicais.

mulheres, incluindo Safo de Lesbos, durante a história foram meios de reprodução de música que iria além da função estética. a primeira principal função da música seria social, documental, depois ritualística.

homens árabes que cantavam de uma maneira considerada efeminada, mesmo em suas nações, influenciaram a maneira de cantar dos trovadores nobres, e plebeus, dos europeus. na europa, desde grécia, e depois roma, música era aquilo que se derivam narrativas lendárias, contando feitos de deuses e herois.

falar de amor não era válido. era, literalmente, coisa de gay e de mulher (que eventualmente também eram gays). é engraçado relegar a subjetividade amorosa àquilo que não é considerado viril, portanto de menor valor. existe algo mais homoafetivo do que um homem se excitar com a virilidade dos feitos do héracles, ulisses ou aquiles?

o autor comenta que a notação musical pitagórica foi um dos primeiros passos para que elites socio-econômicas delimitassem o que é cultura ou não. inclusive, alguns dos modos musicais gregos, como o frígio e o lídio, denominados a partir de regiões gregas consideradas mais estrangeiras do que as mais influentes e comuns, eram consideradas inferiores aos outros modos.

gregos, em toda sua racionalidade matemático-pitagórica, diferenciaram aquilo que poderia ser considerado música daquilo que era só ruído. lembro que toda racionalização é uma limitação das realidades possíveis. só se pode ser racional sobre uma plataforma. esta plataforma, geralmente, é construída sobre as nossas estruturas sociais, econômicas, culturais. música na grécia, em roma e em inúmeras outras localidades foi aquilo que as elites disseram que é música.

até certos tipos de instrumentos eram considerados “menores”, como os de corda (precursores do alaúde). engraçado perceber que, a partir da idade média europeia, os instrumentos de corda foram ganhando prestígio e ganhando novas formas (da harpa ao alaúde, aos primeiros violões, cravos e pianos até a guitarra elétrica – interessante notar a mudança física dos instrumentos: o autor segue o argumento da relação física entre aquilo que foi ferramenta, no sentido de utensílio, com o que se torna um instrumento musical).

o argumento básico do livro parece ser que na música, e provavelmente na cultura em geral, houve uma legitimação e uma apropriação daquilo que era considerado abjeto. a partir do momento em que um movimento popular ganha força e tração, e as elites culturais passam a notar e se deixar influenciar por aquilo, esse movimento inicial é higienizado (e embranquecido, na maioria das vezes).

esse processo, segundo o autor, aconteceu e se perpetua até hoje. inovadores, antes considerados párias (muitos deles foram escravos, prostitutas, pessoas de pele escura e negra), foram apagados da história, ou se tem poucos documentos e registros sobreviventes.

não tem como não lembrar do exemplo recente do funk dos bailes. há mais ou menos 40 anos, essas festas viviam cercadas de polícia e de repressão. quem frequentava eram pessoas, em sua maioria, negras e periféricas. quem produzia eram essas mesmas pessoas. era um ecossistema musical em que essas pessoas faziam músicas deles, para eles, usando das influências deles: do soul setentista, do reggae, do funk americano, do jazz, do techno e do house de detroit e por aí segue.

observar o que funk mainstream é, é a percepção dos exemplos que o autor traz em carne viva. porém, mesmo que o mainstream tenha poder e influência, gêneros como o funk, ou mesmo o recentíssimo barber beats (uma espécie de resposta ao experimentalismo do já considerado datado vaporwave), conseguem continuar na vanguarda. por causa dos mesmos párias.

um maluco que é fã do jogo the king of fighters que decide usar um sample da risada de um personagem que consegue influenciar toda uma nova produção musical.